O Príncipe e o Querubim
Análise Expositiva de Ezequiel 28Este capítulo é dividido em três partes distintas:
- A profecia contra o Príncipe (governante humano) de Tiro (vv. 1-10).
- O lamento sobre o Rei (poder espiritual) de Tiro (vv. 11-19).
- A profecia contra Sidom e a promessa de paz para Israel (vv. 20-26).
A distinção entre o "Príncipe" (Nagid) na primeira parte e o "Rei" (Melek) na segunda parte é crucial. Ezequiel parece olhar para o governante humano e ver, através dele, a sombra da entidade espiritual que o inspira.
Deus dirige-se ao governante histórico de Tiro, que na época era Etbaal III (ou Itobaal).
-
O Pecado da Autodeificação (v. 2):
"Sou um deus; sento-me num trono divino no coração do mar".
Tiro era uma ilha inexpugnável. A segurança absoluta e a riqueza infinita fizeram com que o rei perdesse a noção da sua mortalidade. Ele não se via como um servo dos deuses, mas como uma divindade encarnada. - A Resposta de Deus: "Você é um homem, e não Deus, embora se considere sábio como um deus". Deus confronta a psicose do poder.
-
A Comparação com Daniel (v. 3):
"Você é mais sábio que Daniel?".
Isso prova que Daniel (contemporâneo de Ezequiel na Babilônia) já era famoso pela sua sabedoria divina antes mesmo de o seu livro ser concluído.
O rei de Tiro achava que a sua habilidade de acumular ouro (v. 4-5) era prova da sua divindade. Para Deus, inteligência financeira não é santidade. - A Punição Humilhante (v. 6-10): Porque ele disse "Sou um deus", Deus promete: "Trarei estrangeiros contra você, as nações mais cruéis".
-
O Teste da Mortalidade (v. 9):
Deus faz uma pergunta sarcástica: "Acaso dirá 'Sou um deus' àqueles que o matarem?".
Quando a espada babilônica atravessar a sua carne, a ilusão de divindade desaparecerá. Ele morrerá não como um deus, mas como um "incircunciso" (uma morte vergonhosa e profana), provando que era apenas carne e osso.
Aqui o tom muda. A linguagem torna-se cósmica e transcendente. Embora endereçada ao "Rei de Tiro", a descrição não se encaixa em Etbaal III nem em qualquer humano (Adão nunca esteve no Éden vestido de pedras preciosas, e nenhum rei humano foi um querubim).
A interpretação evangélica clássica é a da Dupla Referência: Ezequiel está a falar do poder satânico que operava por trás do trono de Tiro. Ele descreve a carreira de Lúcifer/Satanás.
-
A Perfeição Original (v. 12):
"Você era o modelo de perfeição, cheio de sabedoria e de beleza perfeita".
Deus não criou o diabo; Deus criou um ser perfeito que se tornou o diabo. -
O Local: O Éden de Deus (v. 13):
"Você estava no Éden, o jardim de Deus".
Não o Éden de Adão (onde Satanás já apareceu caído como serpente), mas o Éden celestial, a sala do trono de Deus antes da queda. -
A Vestimenta Sacerdotal (v. 13):
Ele estava coberto de pedras preciosas: sárdio, topázio, diamante, berilo, ônix, jaspe, safira, etc.
Estas são as mesmas pedras do Peitoral do Sumo Sacerdote de Israel, sugerindo que este ser tinha uma função sacerdotal de liderar a adoração no céu. -
A Identidade: O Querubim Ungido (v. 14):
"Eu o designei como querubim guardião ungido".
Ele não era um anjo comum; era um Querubim, a classe mais alta de seres angelicais associados à santidade e proteção do trono de Deus. Ele tinha acesso ao "monte santo de Deus" e andava no meio das "pedras de fogo" (a presença manifesta de Deus). -
A Queda: O Mistério da Iniquidade (v. 15-17):
"Você era irrepreensível... até que se achou maldade em você".
A Causa: "Seu coração se encheu de orgulho por causa de sua beleza".
Satanás ficou tão impressionado com o seu próprio brilho (que era apenas um reflexo de Deus) que corrompeu a sua sabedoria. Ele quis ser a fonte da luz, não o reflexo.
"Por meio de seu amplo comércio": No contexto espiritual, isso pode referir-se à "venda" da sua rebelião a outros anjos (convencendo a terça parte a cair). -
O Juízo (v. 17-19):
"Eu o expulsei... lancei você por terra".
Deus fez sair fogo do próprio interior dele para o consumir. A destruição final de Satanás está decretada. Ele deixará de existir como poder oposto e tornar-se-á "coisa pavorosa" (ou objeto de terror).
O capítulo termina com uma nota breve sobre Sidom (vizinha de Tiro) e uma promessa de restauração.
- Contra Sidom (v. 20-23): Sidom era a "mãe" de Tiro (cidade mais antiga), mas tinha sido eclipsada pela filha. Deus envia peste e sangue contra ela para que "saibam que eu sou o SENHOR".
- A Remoção dos Espinhos (v. 24): As nações vizinhas (Tiro, Sidom, Amon, etc.) eram "espinhos e roseiras bravas" que feriam Israel. Deus promete remover esses espinhos.
-
A Segurança Futura (v. 25-26):
Quando Deus recolher Israel, eles "construirão casas e plantarão vinhedos".
Esta é uma visão do Reino Messiânico (Milênio), onde a paz não será interrompida por vizinhos hostis, pois o próprio Deus terá executado juízo sobre eles.
Curiosidades e Aprofundamento
Fontes históricas, como Flávio Josefo, confirmam a existência de Etbaal III (Itobaal). Seu nome significa "Com Baal", indicando a profunda idolatria da nação. Ele reinou durante o longo cerco de 13 anos imposto por Nabucodonosor.
Algumas traduções do v.13 mencionam "tambores e pífaros" embutidos no querubim. Isso leva muitos teólogos a crer que Lúcifer era o regente da adoração celestial, transformando seu dom musical em ruído de rebelião após a queda.
É uma expressão rara que descreve a presença imediata e fulgurante de Deus. Andar entre elas (v.14) significava ter acesso à intimidade divina sem ser consumido, um privilégio que o querubim perdeu.
É fascinante notar que Ezequiel usa Daniel, um jovem contemporâneo exilado, como padrão de sabedoria (v.3). Isso mostra que a reputação de integridade de Daniel já era lendária em todo o Oriente Médio, mesmo durante sua vida.
Síntese Teológica do Capítulo
A Anatomia do Orgulho: Tanto no Príncipe humano quanto no Querubim caído, a raiz do pecado é a mesma: o orgulho gerado pela beleza e sabedoria. O orgulho é o pecado original que transforma querubins em demônios. O dom de Deus (beleza/riqueza), quando separado do Doador, torna-se a causa da queda.
Deus é o Juiz das Potestades: Ezequiel 28 ensina que a história humana (Tiro) e a história espiritual (Satanás) estão interligadas. Deus julga não apenas os reis terrenos, mas as forças espirituais da maldade que os influenciam (Efésios 6:12).
A Origem do Mal: O texto mostra que o mal não foi criado por Deus, mas surgiu "dentro" de uma criatura livre que escolheu amar a si mesma mais do que a Deus. A maldade foi "achada" nele (v. 15), como uma geração espontânea no coração de um ser perfeito.
0 comments:
Postar um comentário